Desde sua origem no início do século XIX, as histórias em quadrinhos sempre primaram pela experimentação gráfica e textual. De teor essencialmente humorístico em seus primórdios, com o tempo diversificaram sua abordagem, dando margem a inúmeras possibilidades narrativas e visuais.
Surgidos no seio da indústria editorial, sobretudo no meio jornalístico, só recentemente os quadrinhos passaram a ser considerados uma expressão artística, a Nona Arte. Por muito tempo os quadrinhos foram vistos como uma literatura ilustrada, sofrendo todo tipo de preconceito e desconfiança, primeiro por ser tidos como uma leitura rasteira e desviante da verdadeira literatura, segundo por se ver em sua criação o propósito de mero entretenimento.
Mas os quadrinhos não são nem literatura ilustrada, nem subliteratura, nem paraliteratura, nem só passatempo descomprometido. Basta olhar para os clássicos do gênero, como Little Nemo e Crazy Kat, para a exuberância visual de Tarzan, Flash Gordon, da obra de Moebius, Caza e Druillet, da expressividade de Henfil, Ziraldo, Colin, Vasques, Laerte, para a linguagem visceral de Angeli, Marcatti e Crumb. Os quadrinhos são uma síntese gráfico/textual que origina uma nova e surpreendente narrativa, capaz de encantar aos miúdos em suas primeiras leituras e aos veteranos leitores de todas as idades.
Uma das vertentes mais instigantes dos quadrinhos é a que procura subverter ou recriar sua própria linguagem. Não são poucas as formas narrativas empregadas pelos autores em todo o mundo, algumas como expressão de um contexto cultural local, gerando novas formas de comunicação e arte, a exemplo do hoje universalizado mangá, do faroeste italiano, do terror brasileiro calcado em nossos mitos ancestrais.
Um grupo de autores franceses ousou propor uma nova premissa para a criação das “bandes dessinées”, como na França são conhecidas as histórias em quadrinhos. Reunidos no grupo chamado “Oubapo” (Ouvroir de bande dessinée potentielle – atelier de história em quadrinhos potencial), Killoffer, Lewis Trondheim, Etienne Lécroart, entre outros, propõem o desenvolvimento de histórias em quadrinhos a partir de certas restrições por eles mesmo impostas, como um desafio ao fazer criativo.
Muitas vezes determinadas por fórmulas matemáticas, linguísticas ou numéricas, as histórias brincam com as possibilidades narrativas oferecendo a leitura em vários sentidos, seja linear, seja transversal, de ponta cabeça, vice e versa, até mesmo de forma aleatória, desde que ao final todas as formas façam sentido, ainda que um sentido poético. Esse trabalho extraordinário de criação exige tanto do autor quanto do leitor, que é instigado a participar do jogo para fazer fluir a história.
Etienne Lécroart esteve em João Pessoa para participar do seminário “Quadrinhos: reflexão e paixão”, evento realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunciação da UFPB em parceria com a Aliança Francesa e o Consulado Francês no Rio de Janeiro; ele é um dos expoentes dessa vertente experimental dos quadrinhos franceses, faz parte do quadro da editora independente l’Association e publica também nos mais conceituados órgão de imprensa e pelas editoras de quadrinhos na França.
Em palestra conferida no dia 6 de novembro de 2012, realçou o prazer de se envolver num projeto como o do grupo Oubapo, pelo desafio que oferece a sua verve criativa e pela satisfação com a resolução de seus engenhos. Mais que mero experimentalismo formal, que poderia cair no hermetismo linguístico para iniciados ou no diletantismo vazio, a obra de Etienne é rica também pelo conteúdo, recheado de uma crítica sutil.
O álbum Contos & descontos, lançado em João Pessoa pela editora Marca de Fantasia, é uma amostra dessa visão aguda de Etienne. Entre a ironia dirigida à valorização das obras de arte, o misticismo descerebrado, a boçalidade social e o mercantilismo, o autor apresenta seu jogo visual e narrativo de forma surpreendente, ao mesmo tempo complexo e facilmente deduzível.
Não são muitos os que conseguem transgredir os cânones da arte, é preciso ter domínio de sua linguagem e imaginação para ir além do lugar comum. Etienne mostra, com vigor, que reúne esses dois condicionantes, criando uma obra que dá provas de sua genialidade.
H. Magalhães
Página do álbum Contos & descontos, de Etienne Lécroart |
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