Henrique Magalhães: histórias de mil e uma vidas
Como leitor gourmand, um dos livros que mais me impressionaram no ano 2019 foi o livro do professor, editor, quadrinista e escritor Henrique Magalhães – Cercas que separam quitais – João Pessoa, editora Marca de Fantasia.
Henrique Magalhães é reconhecido internacionalmente como um dos principais quadrinistas brasileiros, sobretudo pela interferência político-social de sua personagem Maria que desde sempre vem lutando contra os tabus que paralisam as realizações do ser humano em sociedade. Mas Henrique também é um pesquisador e professor universitário respeitado com tese de doutorado defendida na Université de Paris – Sorbonne – sobre fanzines.
A paixão por gibis desde a primeira infância levou o professor Henrique a criar a Gibiteca - João Pessoa, PB - na qual reuniu jovens pesquisadores ávidos por conhecer as técnicas e histórias sobre a produção de quadrinhos na Paraíba e no Brasil.
Mas pensar a produção artística de Henrique Magalhães é ampliar os seus traços estéticos para outras vertentes como a sua participação nos jornais locais – produzindo charges – editando livros pela Marca de Fantasia – editora que criou para abrigar manifestações culturais inventivas e impertinentes outrora rotuladas de marginais.
Eis que todo esse relato sobre as artes de Henrique Magalhaes poderia ser tomado como suficiente para a definição do perfil do referido artista, mas é pouco – Henrique escreve, também prosa de boa qualidade com acuidade estética.
Amiúde, Henrique Magalhães nos revela nos 15 contos que compõem o livro Cercas que separam quintais um trabalho de carpintaria literária que pode ser dividido em três aspectos: 1) preocupação com a textualidade límpida – através de frases diretas e parágrafos curtos; 2) fusões das temporalidades que enriquecem o foco narrativo – a posição do narrador; 3) a junção entre memória e intuição (intuição não no sentido místico), o que promove a rica descrição de lugares e personalidades com base na fenomenologia literária – descrever, inscrever – sem cair na tentação de antecipar conceitualmente o que significou cada evento.
Mas como este aparato teórico-metodológico cabe na navegação que o leitor fará pelos contos de Henrique Magalhães?
A primeira resposta se dá em função do próprio objetivo do livro, revelado pelo autor dos contos tanto na apresentação – com o uso da função emotiva da linguagem (página 9) – quanto de acordo com os procedimentos técnicos (página 104). Mas o importante é que, usando a memória à Bachelard – no tempo da intuição Henrique Magalhães reconstrói uma narrativa “às mil e uma noites” no sentido terapêutico.
Há uma pessoa sofrendo acometida de câncer no leitor de um hospital, às vezes em casa, cuja convivência demarcou a existência do narrador que sabe que o tempo urge e se faz necessário recuperar os movimentos da vida através de uma memória helicoidal – ou seja, aquela que deve se tornar a hélice de fatos cotidianos.
Não é de bom alvitre descrever o conteúdo de cada conto escrito por Henrique Magalhães, mas deixar ao leitor o prazer de encontrar no livro a quebra das “províncias dos significados” – zona mista e corpórea, entre o significado e o significante, desbravada pelos leitores.
A primeira província de significados se inicia na infância do narrador – que se inícia com a arqueologia do Quintal – sua extensão imaginária, o encantamento das formas da natureza até a genealogia da descoberta do sexo no conto Essência da Noite, no qual o corpo de Mazinha serve como arquétipo para o gozo humano.
Mazinha é uma personagem que pontua mais de uma narrativa, porque ela representa o choque entre a libido dominadi do mundo masculino e a libido sciendi da química, sensação gerada pelos corpos ainda não conhecida pelo personagem no início da adolescência.
A segunda província de significados ensejada nos contos demonstra o período de estruturação da esfera pública desde o formato das habitações, as ruas, a casa, a convivência com os vizinhos, os enleios familiares.
Nesta segunda província, vale salientar o entusiasmo inicial do pai com o golpe militar de 1964 – a fé no governador eleito na Paraíba – e depois o sentimento de traição política que amargurou um homem trabalhador.
O narrador também narra a perda da liberdade da mulher que sentiu a economia do lar (oikonomia para os gregos) ameaçada pelas mudanças econômicas infligidas pelo golpe militar, o que a fez se resignar a ser mãe e proteger os filhos.
Na terceira província de significados, o narrador demonstra todo o processo de ruptura com o mundo totalitário, da sua transformação política, do exercício afetivo na vida cotidiana junto a mulher que ama, e que se faz necessário adiar a sua partida trazendo – como no exercício filosófico realizado por Santo Agostinho em Confissões – as alegrias do passado para reger o tempo presente.
Assim, as Cercas que separam quintais no livro de Henrique Magalhães são quebradas pelo ‘cume calmo do olho’ de um narrador que produz histórias de mil uma vidas – enquanto espera a despedida material do ente querido – mas como o Dasein (ser no mundo de Heidegger) permanece nas formas geométricas do afeto.
Wellington Pereira
Em
03/01/2020
Leia a edição digital: Cercas que separam quintais
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