A obra de Shiko é talento, destreza e genial atrevimento
Cláudio C. de Paiva
07.11.2024
Precisamos discutir a obra do artista SHIKO, mestre no traço, no desenho, na representação do real através de imagens gráficas. Sua habilidade no manuseio do lápis, do pincel, da narrativa desenhada já “ganhou o mundo”. De Patos, interior da PB, onde viveu por 18 anos, antes de se radicar em João Pessoa, zarpou para a Seul e Florença. Saltou das publicações no Twitter para o top da Graphic novel mundial e ficção da NetFlix. Sua obra tem se alastrado exitosamente. Seu trabalho já decolara desde as publicações impressas em editoras de vanguarda e proliferado no ciberespaço, até que migrou do papel para as telas do cinema. Uma verdadeira odisseia, desde a codireção do “bat-filme”, inocente e sensual “Lelê” (Shiko & Carlos Dowling, 2012), sem abolir dos flagrantes dionisíacos do cotidiano dos jovens outsiders nas quebradas da cidade.
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Shiko já tinha feito vários trabalhos editados no formato gráfico das “bandas desenhadas” anteriormente, como a adaptação de “O Quinze” (Raquel de Queiros), o laureado romance gráfico-curta metragem “Lavagem” (2011), o premiado “Piteco Ingá – O azul indiferente do céu” (2014), “Morto não fala” (2018) e “Três buracos” (2019).
“Morto não fala”, “Três buracos” e “Carniça” são transmutações felizes e inovadoras no campo das artes visuais. A temática é sensível e ganha tratamento hiper-realista nos traços de Shiko, que desenha com cores fortes a violência, a misoginia, a selvageria masculina, a secura e aspereza do sertão. Faz igualmente uma fotografia urbana da solidão, tédio e melancolia, que espanta com transgressão. Mas não sem um toque de sedução, flash da beleza e matizes afetivos, eróticos, sentimentais. Shiko assume as dores das mulheres, escracha contra o assédio, o bullyng, a humilhação e o feminicídio.
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Sua fama, sucesso e reconhecimento vieram com o estouro de Carniça e a Blindagem Mística - A morte anda no mundo (2020), segundo ele, uma trilogia em quatro partes (como a Divina Comédia, de Dante Aliguieri). O primeiro volume, “É bonito o seu punhal” e o segundo volume “A tutela do oculto” sinalizam a simbiose e aproximação dos contrários, onde a violência e o místico se encontram. Nas telas, as expressões do insólito, do abandono, da vida líquida nos becos da cidade.
A narrativa dos quadrinhos de Shiko faz uma denúncia poética da violência, da criminalidade, da abominação machista do cangaço. Aqui a anti-heroína é fêmea.
Carniça flagra uma mulher cangaceira que escapa das armadilhas machistas e parte para o confronto, a guerra contra o macho-predador, a guerra também contra a opressão da sociedade patriarcal. A cangaceira pós-moderna atua como uma chefe de gang de assaltante de bancos. Um olhar rebelde, transgressivo, outsider nordestino que se garante por meio de uma estética visual sofisticadíssima, e domínio formidável na arte do desenho gráfico.
O resgate do cangaço surpreende pelo faro da modernidade expressa na sua imaginação criadora inspirada nas figuras sacras, o POP, rock’n roll, imagens urbanas, livros de bolso, filmes de ação, aventura e terror; daí a atração que exerce sobre os veteranos, siderados pela estética das revistas em quadrinhos e frisson do desenho animado, mas também sobre os jovens leitores e fãs adolescentes, desconhecedores da saga bélica nordestina.
Os textos nos balões, ágeis, sintéticos, minimalistas atualizam o gênero trágico que migrou da literatura, do teatro e do cinema, e se disseminou na obra mix e ultramoderna do design-animação. Não é algo fácil de se elaborar, considerando a necessidade de trazer essa sensibilidade técnica para o contexto do imaginário industrial.
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“Carniça e a Blindagem Mística” retrata o universo da mulher negra que sobrevive no ambiente do cangaço. É feminista na sua essência pois coloca a mulher no centro da cena; ela é altiva, insubmissa, independente, cujo espectro encontramos na personagem Maria Moura (Raquel de Queiroz), de quem Shiko já fez “O Quinze”. Mas o universo de Shiko é pluralista, sacro-profano, erótico, carnal, paradoxalmente intimista e cosmopolita. O signo do feminino é hegemônico em sua apresentação da natureza humana. Antenadíssimo tem a ousadia de misturar Frida Khalo, Olívia Palito e a personagem da famosa tela “A moça com brinco de pérola”, e o faz com adereços e embalagens que se inspiram no pós-punk, na arte pop londrina e norte americana. Suas “Lolitas” são lindas, malvadas bem desenhadas, um pouco perigosas. Ecos da contracultura do século passado.
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Sua arte transforma a brutalidade das relações através de imagens sedutoras, pois seus traços traduzem fidedignamente as emoções e sentimentos dos personagens. O gesto fotográfico de seu desenho é cru e seco, traduz o cotidiano neurótico e a ferida exposta do social em quadrinhos. Sem fronteiras explícitas entre o erótico, o sensual e o obsceno, sua arte não é moralista, e nada contra a corrente fundamentalista. Uma arte que não se submete aos preceitos morais da ideologia carola e bem comportada da família burguesa. Seus personagens são figuras que saltam da vida boêmia, da vida nua e crua. Vida vivida com amores bandidos, paixões arriscadas, relações passageiras, como num filme noir.
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No cenário atual de renascimento da produção cultural em todos os níveis (literatura, teatro, música, cinema, quadrinhos, animação), após o confinamento da COVID, surge jamais um “novo normal”, muito pelo contrário”, emerge um novo “espírito politeísta” que inspira as artes transgressivas, e verdadeiras na assimilação e transfiguração das contradições sociopolíticas sob o signo da inteligência, ironia e sagacidade. Isto ocorre na grande arte, nos trabalhos consagrados ou em vias de reconhecimento; Shiko assim ocupa o seu lugar neste instante de “renascimento” da arte, que mira fundo nos olhos da tragédia racista, classista e misógina nacional com talento, coragem e tenacidade.
Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Université de Paris V (Rene Descartes).
Publicado em https://diariodevanguarda.com.br/colunas/a-obra-de-shiko-e-talento-destreza-e-genial-atrevimento/,
em 06.09.2024 |