TRANSESSÊNCIA:
quadrinhos como metáforas e críticas viscerais ao status quo
ambientados em mundos extraordinários repletos de fantasia
Por Frederico Carvalho Felipe
É fantástica a obra Transessência, do Ciberpajé (Edgar Franco), originalmente publicada em 2003 e relançada agora em edição digital de livre acesso pela editora Marca de Fantasia. Seus traços psicodélicos característicos e enquadramentos inusitados, unidos às reflexões poético-filosóficas, cortam-me a alma e provocam-me uma nova experiência de percepção sobre a dimensão cósmica das origens da Aurora Pós-humana. Um relançamento que transcende tanto o tempo e o espaço em que foram criadas as histórias em quadrinhos, como também o que entendemos como tempo e espaço, para além das linguagens e representações utilizadas e fruídas atualmente.
Percebo sempre nas obras do Ciberpajé um caleidoscópio de referências que extrapolam os quadrinhos e dialogam com a literatura, o cinema, a pintura, entre outras artes, além das críticas sobre a cultura, a sociedade, a política, etc. Suas dinâmicas narrativas e sintáxicas quadrinhísticas são como um arsenal de elementos de múltiplas linguagens e reflexos. É como se eu estivesse imerso, trafegando como um personagem em um filme surrealista de ficção científica ou fantasia com toques de magia, filosofia existencialista e cultura pop. A interação se dá num nível de projeção de questões minhas que se conectam com questões colocadas na obra e renasce nesse universo poético experimental.
Os temas das 11 HQs curtas representam fatores essenciais da alma humana e já trazem ali imbricadas (há quase 20 anos) em suas estranhas entranhas reflexões sobre a importância do transbinarismo no cosmos, no combate àquilo que nos adoece tanto atualmente: o culto ao binário. As sombras e as luzes são expostas como vísceras pelos traços curvilíneos, distorcidos do artista que trafega por nuances das três realidades (RVs) ascottianas, a validada, a virtual e a vegetal.
Antropomorfismos pós-humanos - e também grotescos alguns tantos - que me tocaram profundamente nesse momento de autotransformação, autocura e mergulho interior que estou vivendo. As imagens parecem sair umas das outras se ressignificando constantemente em minha mente, o que me leva a lembrar dos ciclos constantes da vida que fluem de forma ternária entre (e por) alegrias, tristezas e neutralidades típicas da existência.
A vida como um movimento rítmico cósmico que segue sempre se transformando e se movendo mesmo com a morte. Da morte vem a vida. Da vida vem a morte. Não só a morte da matéria, mas também das ideias, das rotinas, dos amores, dos temores, das acomodações. Do que fica às vezes tentando ser imutável, mas que, de forma implacável, sempre perece. Perece, pois nada permanece. Tudo é nada. E o nada é tudo. O que muda é o tempo, e o tempo é ilusão. Uma dança cósmica constante de transformação e movimento. Ying/Yang. Complementação. Hibridismos. MetAMORfoses. Fases. Inícios. Fins. Entremeios. Só o que não muda é que tudo muda. Cabe a nós colocarmos os temperos nessa delícia de viver. É por isso que a criação artística auxilia-nos tanto a ver a vida por diferentes perspectivas, como em Transessência, onde a mistura de ingredientes nos possibilita compreender nossas próprias questões internas através das manifestações criativas de outros abismos, outros sabores e outras interioridades profundas oriundas de outros artistas. Como o próprio Ciberpajé coloca no prefácio: “Criação é autocura, vida é criação!”.
Páginas de Transessência, do Ciberpajé Edgar Franco |
Ao fruir Transessência com calma, me vi ali refletido, como em um espelho sombrio partido que revelou minha alma nesse recorte específico da vida que me corta. Uma alma insignificante ao ser pensada como mais uma inserida no caos universal, mas única em sua subjetividade estelar acompanhada por outras tantas e diversas estrelas circundantes que me formam e são também formadas pelos incontáveis contatos existenciais que também um dia irão perecer e se transformar em outras formas de energia no cosmos. Uma arte que me desafoga. Me retira do breu cego e me aponta caminhos de pensamento e ação. Imaginação. Memórias. Percepção. Intenção. Empatia. Amor. Trocas. E força. Força! Vejo uma força incrível na obra! Força essa revolucionária e transformadora, que transborda ao posterior universo da “Aurora Pós-humana” criado pelo autor e já possui indícios de muitas questões que foram aprofundadas a posteriori.
A obra de Edgar Franco e suas metáforas, representações fantásticas e críticas viscerais ao status quo transporta-me para mundos extraordinários repletos de fantasia visionária acerca das relações entre os seres, os espaços, os sistemas e os tempos. Assim me transformo também a partir de seus elementos de composição, renovando e ressignificando águas que estavam paradas em mim gerando febre e dores nas juntas. Uma projeção de questões que me tocam enquanto humano e deslocam meu olhar a um mundo magicko instigante e fascinante. Um futuro alocado em outro mundo. Um outro mundo muito parecido com o nosso. Um outro como nós mesmos. Um nó em nós que nos é desatado. Adorei esse contato. Uma grande obra de um grande artista de nossos tempos transitantes, que pulula entre o analógico e o digital de forma híbrida sensacional. Parabéns, Ciberpajé. E muito obrigado pelas inspirações que sempre me surgem de suas obras incríveis!
Frederico Carvalho Felipe é artista transmídia,
professor e doutorando do Programa de Pós-Graduação
em Arte e Cultura Visual da FAV/UFG, em Goiânia.
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