Relicário
QI e altruísmo
A edição 170 do fanzine QI (Quadrinhos Independentes. Edgard Guimarães. Brasópolis, MG, julho/agosto de 2021) mantém o rosário de preciosidades para quem aprecia quadrinhos. Cada vez mais acolhedor e diversificado, a publicação conta com a dedicação entusiasta de um bom número de articulistas, quadrinistas e um seleto time de leitores, formado mais por especialistas que por meros diletantes.
Além de artigos que rememoram diversas fases dos quadrinhos nacionais e d’alhures em forma de verdadeiras pesquisas históricas e reflexivas, a seção “Fórum” não nos deixa negar o quão engajado é o público do fanzine, que se torna um dos raros espaços de inteligência a discutir sobre os quadrinhos no país. Esse caráter coletivo, coordenado pelo caprichoso Edgard Guimarães - ele mesmo um expert no assunto -, é o que faz a publicação continuar absolutamente imprescindível, ainda mais em um momento de transformação radical das mídias e da cultura em geral.
Dentre tantos textos de qualidade, chamou-me a atenção, em particular, o depoimento do editor intitulado “QI nas Bibliotecas”, em que descreve uma iniciativa que me tocou profundamente e que me fez refletir sobre desprendimento, abnegação e generosidade, artigos cada vez mais escassos nos tempos correntes. Pensei sobre minha própria história, sobre a construção de minha personalidade e minhas ações em direção ao coletivo e ao bem comum.
Lembrei-me que, no final dos anos 1980, de tanto ir e vir da Paraíba a São Paulo, onde fazia
Mestrado em Ciências da Comunicação na USP, senti-me quase desterritorializado, sem espaço fixo aqui e lá. De quebra, tinha que lidar com boa quantidade de revistas em quadrinhos que juntara desde a adolescência, coisas memoráveis como toda a coleção do Homem-Aranha da EBAL, as magníficas revistas da coleção Clássicos Walt Disney, da Abril Cultural e tantas outras que não cabe nomear.
A isso, acrescente-se minhas próprias revistas Maria e centenas de fanzines que acumulara durante a pesquisa do Mestrado, cujas publicações eram sobre o que investigava. Inspirado em notícias sobre a Gibiteca de Curitiba, decidi socializar essa coleção criando a Gibiteca Henfil, em dezembro de 1990.
A gibiteca nasceu como atividade acadêmica, projeto de extensão que fiz aprovar no Curso de Comunicação Social da UFPB, onde ensinava. Contou também com a participação da Fundação Cultural da Paraíba, que cedeu o espaço para instalação da Gibiteca Henfil, bem como disponibilizou a professora de Educação Artística Nina Carneiro (Maria Carneiro Ramalho) para dirigi-la juntamente comigo.
A criação da Gibiteca Henfil - que mais apropriadamente pode ser chamada de Gibiteca e Fanzinoteca Henfil - foi e ainda é um projeto exitoso, tendo contribuído para o estímulo à leitura e à pesquisa e formado algumas gerações de quadrinistas na Paraíba. Além de eventos e publicações, promoveu cursos e exposições, consolidou a cultura dos quadrinhos entre os jovens e fez a fantasia dos leitores veteranos. O acervo, por meio da doação dos leitores, multiplicou-se como não se esperava de modo que jamais se questionou a atitude de renúncia da posse exclusivista de meus velhos gibis guardados com carinho e afeto.
À altura de meus 64 anos, aposentado e com longa trajetória dedicada à editora Marca de Fantasia, com a qual construí incansavelmente um acervo de obras excepcionais de quadrinistas amadores e profissionais, representação memorável dos quadrinhos independentes, senti a necessidade de radicalizar uma tendência que já vinha experimentando há alguns anos.
Deixaria - em termos - a produção impressa em proveito da digital. Concentraria a produção em livros teóricos sobre quadrinhos e artes visuais, dando vazão às pesquisas acadêmicas na área. Distribuiria gratuitamente as publicações com o objetivo de ampliar a disseminação do conhecimento.
O acervo de livros, álbuns e revistas foi todo posto em liquidação, pela metade do preço, a sobra segue para bibliotecas a que eu possa ter acesso. Além da Gibiteca Henfil, que já recebe parte da produção da editora, tenho levado as publicações para algumas entidades, como a Biblioteca do município de Palhano, no Ceará, cidade em que tenho trânsito habitual.
Isso demonstra certo grau de benevolência e preocupação cultural, mas, ainda que relevante, apequena-se diante do relato de Edgard Guimarães. Editor de obras incontornáveis, como o próprio fanzine QI, Edgard decidiu doar a centenas de bibliotecas públicas do Sudeste e Sul do país tudo o que resta de suas publicações em uma atitude não só de desprendimento, mas com empenho e determinação, comprometido com a difusão cultural. A um custo econômico enorme e uma dedicação fenomenal, Edgard Guimarães nos mostra que a vida vale mais por atitudes como essa, pelo compartilhamento, pela preocupação com os outros, por ações destituídas de vaidade e egoísmo.
Henrique Magalhães
19/09/2021 |