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O rebolado de Maria

Gonçalo Junior

Quando li uma tira de Maria pela primeira vez, em 1983, a personagem tinha apenas oito anos de vida. Eu, dos 15 para os 16 anos. Foi paixão à primeira vista, embora logo soubesse que não havia a menor chance, pois o “lance” dela era outro. Explico: apesar de Maria ter já uma tradição de luta pelas causas sociais e políticas, além de ser militante feminista convicta, seu primeiro álbum que tive em mãos foi A maior das subversões – no caso, o amor. Na capa, um escândalo para uma época em que os quadrinhos ainda eram puritanos: Maria formava um par apaixonado com outra garota, Pombinha.

Creio que aquele foi um momento muito importante para seu criador, Henrique Magalhães, e um divisor de águas na história da personagem e até mesmo na vida pessoal do artista, quando adotou uma postura de militância pelas minorias sexuais, principalmente. Só algum tempo depois, ávido por ler outras histórias mais antigas, pude visualizar que Maria estava na rua não por uma, mas por muitas causas.

Quem conhece o Nordeste, em especial o interior, sabe bem quantas Marias e Pombinhas existem em cada rua, em cada esquina. Geralmente são vizinhas que tudo sabem e passam os dias a se frequentar nas janelas, nas calçadas e feiras a comentar sobre o negócio do alheio. Ou seja, a vida dos outros. No caso da série de Henrique, num primeiro momento, seus personagens tratavam do feminismo. Depois de política, economia e questões sociais. Em seguida, relacionamentos e sexo. Um universo simples, sem espaço físico claramente definido, porém rico e de tradição que Henrique soube captar com precisão e encanto.

Na verdade, meu fascínio por Maria desde o primeiro momento foi também pelo traço de Henrique, que considero um dos mais belos e personalíssimos que conheci no humor gráfico brasileiro. Havia, porém, uma combinação com sua capacidade de sintetizar ideias e opiniões com humor refinado em apenas três cenas. Qualquer roteirista entende que fazer tiras é bem mais difícil do que uma história mais longa. Além disso, a ousadia do autor ao lançar um trabalho tão provocante e desafiador como A maior das subversões coincidiu com um momento de minha adolescência que eu descobria o rock político brasileiro, além de escritores malditos que chegavam ao Brasil com até três décadas de atraso pela Brasiliense e L&PM, como foi o caso dos beats.

Maria, de imediato, encaixou-se dentro desse universo de descoberta questionador que atingiu a maioria da garotada naquele apagar das luzes da ditadura. Antecipou até, de certa forma, o “feminismo lésbico”, digamos assim, que Madonna lançou no mundo pop com suas canções e atitudes – e uma boa dose de escândalo. É preciso ressaltar algo importante aqui: a cantora americana só causaria polêmica mais de um ano depois do imprescindível A maior das subversões, o que significa que Henrique não acompanhou uma onda de modismo, mas, de certo modo, antecipou algo nesse sentido.

Os livros anteriores mostraram uma Maria mais política, que revelava o profundo sentimento humanista e solidário que sempre vi em seu criador – características, aliás, perceptíveis da influência de Henfil, uma inspiração declarada. Ela reclamava da inflação, dos aumentos abusivos nas feiras populares, pedia eleições diretas ou denunciava a seca no Nordeste como uma legítima cangaceira.

Havia nas entrelinhas, porém, certa esperança no final de cada tira. O que deixava sempre alguma proposta de reflexão. Era preciso lutar e acreditar, em síntese. Sobressaía nos personagens uma dignidade a toda prova e a defesa de certos valores éticos que davam um tom sutil de alguém cético, porém disposto a dar sempre mais uma chance.

Atualidade

A maior parte das tiras reunidas nesta edição traz o autor no melhor de sua forma como desenhista e roteirista. São situações que formam um retrato de um período importante na história recente do Brasil no qual Henrique deixou sua marca como escriba e cartunista dos mais contundentes. O material foi produzido entre 1983 e 1984, quando a ditadura agonizava com o fracasso de sua política econômica e uma pressão difícil de ser contida pela sociedade organizada na volta do poder aos civis.

A partir de um forte censo crítico, Maria foi uma militante das mais firmes, porém sem radicalismo. Representou em seu discurso o desejo de mudança sem deixar morrer seu espírito sempre desconfiado. Ranzinza, muitas vezes. Terna, quase sempre. O mesmo comportamento ela teria no completo engajamento do autor na campanha pelas eleições diretas no primeiro semestre de 1984.

O último bloco de tiras, feito treze anos depois, mostra que o tempo passou, mas os problemas não. Se não observar a data na lateral do quadrinho, o leitor certamente poderia pensar que o livro inteiro data de um mesmo momento. Inclusive o Brasil de hoje – pobre, profundamente desigual e corrupto, só que com a inflação contida, graças a uma política econômica recessiva que impõe sacrifícios a todos. Daí a atualidade e certa atemporalidade de Maria e o talento de Henrique para captar em cada época as aflições que a cercaram.

A leitura das histórias da última parte, no entanto, revelam um amadurecimento explícito do artista. Tanto no traço quanto nos diálogos – estes, mais densos, reflexivos, arredios do propósito de fazer rir. Apesar da postura contundente em relação à economia, à política, à corrupção e à violência, Maria parece mais preocupada consigo mesma, com a solidão, o amor e o manancial de carinho que tem para dar ao próximo. Tudo, enfim, que representava a própria personalidade do criador num momento de amadurecimento criativo e pessoal.

Por volta de 1987, propus a Henrique uma parceria. Isso aconteceu por volta de 1988. Promoveríamos numa mesma história – que acabou em três páginas – um encontro entre Maria e Baiano, um favelado de Salvador que eu criei em parceria com Sidney Falcão, velho companheiro de quadrinhos e de rock. Bolei o roteiro e Henrique rapidamente desenhou sua parte – além de melhorar bastante os diálogos – e diagramou as páginas.

A Sidney coube apenas preencher os quadros onde nosso personagem aparecia. Ficou uma beleza, bem ao estilo de Zé Carioca e Pato Donald no desenho animado Você já foi à Bahia? (1942), de Walt Disney. Publiquei a aventura no fanzine Quadrinhos Magazine, que eu editava na época. Era uma história apimentada, com elementos de sexo e que tratava de um amor impossível, principalmente pelo fato dos dois serem homem e mulher, mas incompatíveis ante a opção da mocinha. Tudo com bom humor, como acontece quando dois velhos amigos se encontram.

Contexto

Nesse balanço de exatos 30 anos, Maria se inseriu também num outro contexto importante: o rico, criativo e “explosivo” – com a licença de Henrique – mundo da imprensa alternativa. No caso, os fanzines, a mais genuína de todas as formas de expressão, uma vez que é desprovida de qualquer direcionamento ideológico no sentido mais político-partidário do termo. A revista de Henrique tinha regularidade, qualidade gráfica acima da média porque, em especial, passava pelo processo de impressão convencional, superior às matrizes de mimeógrafo a óleo ou a álcool e às fotocópias, que então começavam a se popularizar, com preço mais acessível – e que levaria ao surgimento de centenas de fanzines na época.

Esse, porém, era apenas um detalhe. Como artista, Henrique rompera em definitivo com a influência de Henfil, apesar de continuar fiel à abordagem temática política e social. Construíra um estilo próprio e avançara muito quando passou a tratar de assuntos ligados aos relacionamentos e à sexualidade. Ler Maria na segunda metade da década de 1980 foi acompanhar com entusiasmo a luta do autor contra várias formas de preconceito. Os quadrinhos a serviço de causas importantes. A simpática nordestina com seu tradicional vestido branco levantou muitas bandeiras e foi para o front.

Nunca conversei com Henrique sobre isso, mas não me lembro de ter lido uma única linha que trouxesse algum comentário sobre sua desafiadora abordagem sexual. A não ser um bate-boca com Alvimar Pires dos Anjos, da revista Factus. Numa carta ao autor, criticou duramente a abordagem da edição, com base em conceitos teosóficos. A resposta veio no fanzine Marca de Fantasia número 2, de setembro de 1985.

Havia uma tolerância cordial e silenciosa. As capas de suas revistas apareciam sim, divulgadas nos demais zines, mas nada que destacasse ou mesmo que fizesse referência ao debate proposto foi mostrado. Isso, num universo de editores e leitores em sua maioria machos. Machos gentis, pelo menos. Ou cavalheiros, pois Maria era e é, acima de tudo, uma dama.Não imagino que reação teria o artista se visse algum tipo de preconceito a seus quadrinhos.

Não se pode falar de Maria, aliás, sem colocar Henrique Magalhães não somente como autor de quadrinhos. Ele se tornou um dos mais importantes e conceituados editores de fanzines nessas quatro décadas de história e hoje presta um serviço imprescindível como editor de livros sobre e com quadrinhos através do selo Marca de Fantasia.

Desde o primeiro fanzine que fez, vale ressaltar, ele iniciou uma busca incansável pela qualidade e deu passos largos nos vinte anos seguintes – até se tornar editor de livros – para elevar o gênero a um nível de primor, bom gosto, inteligência e evolução editorial sem, no entanto, perder sua independência e caráter alternativos.

Tudo isso atrelado a sua característica de incessante militância pela valorização das histórias em quadrinhos. Inclui-se aí resgate histórico e artístico, além da promoção dos artistas brasileiros. A editora Marca de Fantasia se tornou uma importante ferramenta de projeção de jovens talentos, cujo alcance tem rompido barreiras graças à boa utilização das ferramentas tecnológicas – computador, impressoras coloridas e Internet – e de uma bem articulada rede de interação de fanzines e leitores. A cada novo título, Henrique se supera e surpreende como síntese do quanto a revolução digital pode ser capitalizada pela imprensa alternativa.

Nesse contexto, seu primeiro fanzine – Maria, de 1976, era revista –, Marca de Fantasia, tornou-se um acontecimento do gênero na década de 1980. Foi, sem dúvida, o mais bem feito gráfica e editorialmente e o que melhor captou a tendência de amadurecimento que predominou nos zines daquele período: de meras revistas de fãs a veículos de reflexão na década anterior para o aprimoramento das histórias em quadrinhos nos anos 80, ao introduzir elementos do jornalismo como notícias, entrevistas, reportagens, artigos e resenhas.

Seus sete números com lombada quadrada e formato livro ainda esperam o devido reconhecimento histórico. Não aconteceu ainda principalmente por culpa do próprio Henrique. Ao se tornar o mais importante historiador de fanzines do país – com quatro livros publicados, imprescindíveis para se compreender o fenômeno –, viu-se na saia justa de comentar o próprio trabalho. Foi generoso com outros, inclusive comigo, e talvez severo demais consigo. Nada mais natural e coerente para a sua personalidade.

Nas vezes que nos encontramos em Salvador, João Pessoa e São Paulo, peguei-o em momentos de profundo desânimo, em seu esforço solitário de fazer dos quadrinhos no Brasil algo decente e respeitável. Sempre ficou a impressão de que ele é uma usina de ideias que trabalha 24 horas por dia, na capacidade máxima, prestes a explodir. Talvez, por isso, não tenha tempo para perceber o quanto seu trabalho já rendeu frutos preciosos, publicações que mostram uma surpreendente capacidade de resistência.

Nesse ponto, ele e Maria se fundem. Do mesmo modo que ela tenta mudar o mundo, pelo menos à sua volta, Henrique tem ido cada vez mais longe na valorização dos quadrinhos como arte. Sua vida se funde com a luta pelos quadrinhos mais genuínos que um dia se sonha sejam feitos no Brasil. Se existe um front, Henrique está lá, com uma bandeira em punho.

Publicado no álbum Maria: espirituosa há 30 anos, de Henrique Magalhães. Paraíba: Marca de Fantasia, 2005.



Marca de Fantasia
Março de 2024
Editor: Henrique Magalhães
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