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Maria, a dama da subversão

 

Alberto Ricardo Pessoa
Dezembro de 2020

Henrique Magalhães é o maior cronista contemporâneo vivo do cotidiano paraibano. Do ponto de vista de alguém fora do eixo das megalópoles, temas universais são debatidos por esse autor por meio de sua persona Maria.
As marcas de suas crônicas podem ser lidas em A vida em turbilhão, que aponta a construção do discurso político-social dos quadrinhos de Henrique Magalhães, com ênfase no período da sucessão eleitoral de 2018.

Ser um cronista dos quadrinhos não é uma decisão fácil. Em uma sociedade que encara as histórias em quadrinhos como uma mídia voltada para a criança, é muito fácil o autor ser subestimado e ser publicado em páginas complementares de um jornal, como podemos ver com Angeli, o qual, após anos publicando diariamente, alegou perda de criatividade e acabou por deixar de realizar as tiras da Folha de S.Paulo.

Mas depois nós falamos sobre Angeli. Agora voltemos a Henrique. A justificativa da leitura de A vida em turbilhão reside na importância de considerar as histórias em quadrinhos como um meio de registro e compreensão da história contemporânea de nossa sociedade, como meio de expressão de resistência do autor e uma forma criativa da cartografia histórica por meio de um viés crítico e de contestação.

Nesse escopo, o nosso cronista versa acerca de diversos temas, dos quais destaco a homenagem a Mariele Franco; o jogo de palavras que a língua portuguesa permite, ao relacionar realidade líquida com o desastre da barragem de Brumadinho; a persona sociológica ao discutir temas como pós-verdade e ideologia de gênero.

Nem tudo nas crônicas de Henrique são espinhos. As lembranças do Cafuçu e do nosso pequeno, mas afetuoso, carnaval paraibano, estão inseridas nas marcas de discurso nas reflexões acerca dessa festa que foi reconfigurada e tirada de seu contexto pelo eixo Rio-São Paulo.

Seu espírito feminista, diferente de feminino, se mostra na persona de Maria e suas amigas ao se posicionarem contra o governo vigente.

Importante destacar esse ponto: Henrique não se posiciona contra o Brasil ou é um autor ideológico que acredita que quanto pior o Brasil, melhor. É simplesmente impossível para um cronista que acredita na construção social de gênero, no fim das idolatrias e da corrupção e na educação como meio de estabelecimento de relações humanas ser a favor de um governo que acredita exatamente no oposto.

Henrique questiona a si mesmo, ao oferecer um diálogo entre Maria de 2020 e sua versão mais jovem de 1982. De todas as tiras, a que mais me emocionou e que me lembrou meu irmão, homossexual, que descobriu a sua sexualidade num período que AIDS era propagada como “câncer gay” pela grande mídia. É uma tirinha que representa uma vitória para toda uma geração. Obrigado Henrique por lembrar de pessoas como meu irmão.

Como todos sabemos, Henrique e Maria são ateus, mas acreditam que o Natal deve ser celebrado em seu real significado. Tanto Henrique como Maria criticam a tecnologia e sua alienação. Ambos são reclamões natos, mas numa deliciosa fórmula de humor e ironia.

Em tempo: voltemos a Angeli.

Henrique e Angeli são contemporâneos, mas enquanto um apresentou uma estafa criativa, o outro se mantém cada vez mais afiado, tanto no discurso verbal como no não verbal. Creio que uma resposta pode ser encontrada na tirinha “Indignação”, na qual Henrique editor, professor universitário, se apresenta, acima de tudo isso, como um fanzineiro.

Anos atrás Angeli ironizou a questão do fanzine com as tirinhas do Comando Revolucionário Kurt Cobain, nas quais garotos revoltosos com o sistema decidem conscientizar o mundo com fanzines, dando a entender para o seu leitor que fanzine é uma grande bobagem. Importante destacar que toda sua publicação foi em um jornal dedicado à comunicação de massa e dito isso, o seu discurso underground merece ressalvas.

Assim penso que o espírito fanzineiro, punk, do faça você mesmo de Henrique encarnado em Maria é o que preserva sua criatividade e genialidade.

O autor se mantém contemporâneo e em rota de colisão não só em relação ao atual governo, mas até mesmo ao momento de diversos autores de quadrinhos brasileiros contemporâneos, que em nome de espaço para publicação e espaço midiático, optam por realizar obras apáticas e inócuas de discurso social e político.

Texto publicado no álbum “A vida em turbilhão”, em 2020, pela Marca de Fantasia.



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Março de 2024
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