Bastidores do humor - 7
Reincidência
Henrique Magalhães
03/2025
O processo criativo às vezes apronta peças que nos surpreende. Maria também tem seus caprichos e me faz pensar os limites da criação.
O período carnavalesco sempre foi fértil para mim. A graça, a festa, a irreverência e a ironia do momento provocam muitas ideias para a criação das tiras de Maria.
Em 2025 não foi diferente. Uma tira puxou a outra e a outra e a outra, até fechar a série com uma sobre a ressaca do carnaval, quando se apregoa que o ano, afinal, está para começar. Num abraço afetuoso, Maria e Pombinha desejam-se, então, um “Feliz ano novo”.

No rescaldo do carnaval, numa pausa criativa, resolvi digitalizar um antigo álbum da personagem chamado “Olhai os lírios no campo”. Lançado em 1998, esse trabalho foi um marco na edição de Maria ao reunir uma das melhores fases das tiras publicadas nos jornais diários.
 
Mas, eis que me deparo com uma tira exatamente igual a essa última sobre o ano novo pós-carnaval. O texto e o desenho mudam um pouco, mas a ideia é a mesma. De certo modo isso foi um choque para mim, a repetição inconsciente de uma tira de quase 30 anos me deixou desnorteado.
Ao fazer 50 anos de produção é inevitável que muitas ideias já trabalhadas voltem à baila. O quotidiano anda em círculos, ou ciclos, e muitas vezes me vi lidando com situações que me passavam a sensação de déjà vu.
Maria trata de política e costumes, que avançam e retrocedem constantemente; toca nos ciclos da vida, com o mesmo clima de natal, carnaval, férias, recomeço e fim de ano a se repetir infinitamente. Esse processo cria padrões a induzir caminhos ao fazer criativo, levando a enquadrar o humor em fórmulas fáceis e prontas à fruição.
A sensação de reincidência já me sobressaltava, ao me confrontar recentemente com a ameaça de nova ditadura militar. Maria repercutiu isso, ao se ver com o mesmo discurso inflamado que explodia em suas tiras em meados dos anos 1970. A diferença era a sutileza do texto e o acabamento gráfico, que vieram com o amadurecimento, mas a essência era a mesma.
Essa constatação que denota um esgotamento criativo pode ser o sinal de que Maria já disse o que tinha que dizer, já cumpriu sua função política e cultural. Talvez seja hora de recolher-se, antes que fique repetindo-se indefinidamente, como o looping da vida que insiste em voltar atrás, ainda que tenha avanços pontuais.
Maria calada ainda tem muito a dizer. Basta que se releia seus álbuns disponíveis no sítio da editora Marca de Fantasia. Quanto a mim, hei de arranjar o que fazer: mais leitura, tomar bons vinhos, cuidar do jardim, escrever, pintar, montar quebra-cabeças, ouvir muito blues, passar o tempo fazendo ponto de cruz. E, como Belchior, amar e mudar as coisas, que me interessa mais.
Assista ao vídeo em
https://www.youtube.com/watch?v=RtH9zEslOk4 |